quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Distraindo a Verdade

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Uma vez, eu me lembro bem, quando eu a vi ela estava sentada com um olhar distante como sempre. Fiquei imaginando o que poderia estar passando em sua cabeça, que possíveis coisas ela poderia ter vivido e de que forma isso refletia na imagem que eu via a muito.

Desejava eu que ela pudesse se comunicar comigo, até me aproximei, mas nem por sons, nem por símbolos, nada a fazia sair do transe transcedental que se havia colocado. Era a mesma roupa, o mesmo lugar e eu já tinha ouvido falar que ela gostava de chá e de coelhos, por que nada a movia agora?

Fui criando uma angústia, aquela bela imagem parada a minha frente que representava tudo que eu sempre quis, estava tão ao alcance agora e ao mesmo tempo distante. Era uma foto, um quadro, não, não era. Mas não existia vínculos entre nós, não existia palavras, talvez apenas eu visse ela, ela nem me visse.

Foi então, que nesse dia, após tantos, no meio da penumbra vejo trilhos brancos luminosos ao ar, aos poucos eles vão tomando outra forma e se junta a esse cenário um ser risonho. Esse ser de ar tranqüilo, como que se vem para mostrar que todo nosso sofrimento é apenas besteira, era um gato. E esse gato que suprimiu do vazio e tomou forma, veio em minha direção, o gato falava.

“Se for tudo o que você realmene deseja eu posso lhe mostrar os pensamentos dela”. O fez apontando para o objeto do meu desejo que estava imóvel sem perceber as novas ações que se desenrolavam no local. “Mas… pense, nem sempre tudo o que queremos ter é o que gostaríamos de ter. Talvez ela seja apenas uma desculpa para que você não viva a sua própria vida, e depois de tê-la? O que restaria para você?”.

Fiquei atônito por alguns instantes, parei. Olhei para todo o cenário e pela primeira vez em anos me questionei se esse tempo todo eu fiquei tão preocupado em saber o que pensava a Alice que nunca escutei o que eu mesmo pensava. Da mesma forma que não havia vínculo e comunicação entre eu e ela, não havia em mim.

O gato se foi, assim como veio, e eu decidi ir também. Naquele dia eu percebi que não era apenas ela que estava imóvel o tempo todo, talvez eu fosse visitá-la algum outro dia. Por hora, não mais.

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Quem Manda Em Quem

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Não acreditamos mais em Zeus. Usamos a palavra mitologia para definir as crenças de muito tempo atrás. Aquelas das quais não fazem absolutamente nenhum sentido para o tempo presente. Agimos assim sem perceber o mecanismo da fé funcionando inerente a qualquer época, perpetuando a mesma ideia através de recursos simbólicos grosseiramente iguais aos de antigamente, e ainda sim olhamos para o nosso tempo como se ele fosse mais sagrado do que outro.

A percepção da fé como alegoria é fundamental para quem quer autonomia sobre ela. E o sistema da fé tem funcionado até hoje porque há quem o controle com autonomia, e há quem se submeta a ele com dependência. É um jogo de “sabe e não sabe” onde quem sabe sempre tem vantagem. Esse modelo se reproduz em diversos níveis. Por exemplo: é através desta autonomia – num nível primário – que é possível hoje, que desdenhemos da fé dos nossos antepassados primitivos.

Contudo, ter autonomia sobre a própria fé não significa necessariamente abandonar a crença, mas sim fazer um uso consciente dela. É mais ou menos como o usuário de cocaína que assume e reconhece o risco do vício e faz uso da droga com parcimônia tomando como principal cuidado a posição de “quem manda em quem”.

Talvez essa maturidade “espiritual” que institui o auto-respeito em relação as questões existenciais, imaginações, fantasias, desejos e esperanças, seja um caminho para entender a fé como uma experiência particular que tem reflexo no coletivo. É aquela velha história: só quem ama a si próprio é capaz de amar alguém. Quando somos capazes de ter certeza de que alguma fé merece contestação, isto pode ser um indício de que a nossa própria crença corre exatamente o mesmo risco. Ignorar ou se intimidar diante deste passo significa fechar os olhos para a história que a humanidade vem desenhando desde sempre. Além de fechar uma série de outros caminhos que poderiam estar abertos. E correr um enorme risco de participar do grupo dos fundamentalistas de conveniência.

A visibilidade LGBT tem esbarrado diretamente na fé cristã. E essa disputa por espaço na sociedade vem sendo vencida pela força da crença. Estes movimentos conflitam por que ambos buscam interferência coletiva. Os cristãos querem que a sociedade se mantenha refém dos preceitos cristãos, e os LGBT querem que a sociedade admita a convivência com a diversidade sexual (vejam a grande diferença de objetivos propostos neste texto).

Para o cristão, é questão de fé conquistar o espaço do outro. Para a lésbica, o gay, a(o) bissexual, a(o) travesti e a(o) transexual é questão de direito conquistar a participação na sociedade. Não há acordo que proporcione um ganho para ambas as partes: ou os cristãos admitem a convivência com LGBT’s (o que na prática significa o fim da disseminação da discriminação através da fé – do mesmo jeito que hoje não é possível vender sua filha através da bíblia – Êxodo 21:7), ou os LGBT’s admitem sua marginalidade, se resignando a não ter seus direitos assegurados, assumindo uma condição de cidadão de segunda categoria.

É uma ilusão sonhar com a possibilidade de que a conquista LGBT não interfere na fé cristã. Interfere sim e muito. Exatamente do mesmo jeito que a cristandade passou maus bocados para se adaptar a não discriminação por etnia, sendo que muitas seitas mantém suas doutrinas racistas, com uma imunidade calcada no que chamam de liberdade religiosa. A diferença é que hoje a conduta racista é socialmente condenável, e a conduta homofóbica, não. Será um tremendo golpe para a comunidade cristã, a admissão de que relações homoafetivas existem. Isto implica numa propaganda tão positiva do pecado que o torna praticamente irresistível a quem é homossexual e também a quem não é. É claro que isso não quer dizer que heterossexuais cristãos cairão na tentação do pecado do “homossexualismo”, mas sim que estarão mais expostos ao pecado da felicidade. E o pecado de ser feliz é uma ameaça gigantesca para quem acredita na salvação através do sofrimento e do sacrifício.

Diante deste duelo cabe a sociedade civil o julgamento. Cabe a este amontoado de gente, onde o cristianismo é amplamente bem representado, admitir o que é mais justo: o direito de discriminar ou o direito de não ser discriminado. E o caminho implica na exposição sincera de quem é o carrasco e de quem é o condenado. Nesse sentido, poupar esforços na denúncia em nome do medo da fé será uma covardia nada estratégica. É o que temos feito até hoje. E sem sucesso relevante.

O respeito é uma relação de equilíbrio de poder, e para tanto é fundamental uma postura austera e que saiba agir diante do embate. É preciso que saibamos tratar o que é mito, como o senso comum trata o mito sem perceber que Jesus e Zeus são exatamente a mesma coisa.

Ismael Ramos

Publicitário e ativista LGBT

Membro da Associação Arco-Íris de Joinville

www.twitter.com/ismaelramos